Estamos diante de um risco regulatório que deve ser enfrentado o quanto antes, por meios dos ajustes legislativos necessários
Escrito por: Guilherme D. F. Dominguez
05/03/2019 07:00
Brasília – Motoristas do Uber protestam contra a votação do PL 5587/16, que trata da regulamentação dos serviços de transporte individual privado (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Em minha primeira contribuição à coluna Inova & Ação, eu abordei as barreiras culturais e legais que muitas vezes não permitem que a inovação floresça dentro do serviço público. Fiz um chamado à ação, mostrando o marco legal favorável que temos para permitir uma maior abertura do Poder Público a novas práticas e melhorias nos serviços públicos.
Desta vez vou abordar outro aspecto que me parece importante nas pautas possíveis correlacionando inovação e Poder Público: o dever geral de bom senso e uniformidade pelo regulador, especialmente quando pensamos na inovação que vem de fora para dentro da Administração e, mais especificamente, naquelas inovações que acabam por demandar a intervenção da Administração Pública a partir do advento de novas tecnologias, mesmo que nas relações apenas entre particulares.
Esse tema ganha especial relevância em um País como o nosso que tem um federalismo disfuncional, com muita sobreposição e pouca complementariedade, onde múltiplos entes podem interferir nas mais diversas atividades da sociedade. Essa dinâmica federativa amplifica o risco de que, na tentativa de regular, o Poder Público acabe por asfixiar a inovação. Irei tratar aqui de um caso concreto: a multiplicidade de regulamentações municipais envolvendo os aplicativos de transporte individual de passageiros, a partir de uma delegação federal imperfeita
O Caio Longhi já fez aqui neste espaço um texto abordando os desafios da regulação municipal paulistana, por exemplo, na questão do uso compartilhado de bicicletas. Esse é um tema de interesse claramente local e que, mesmo assim, demandou um grande esforço do autor na tentativa de estabelecer o alcance e limites do poder regulador municipal. Mas se pensarmos, por exemplo, na regulamentação dos serviços de transporte individual de passageiros, o debate fica ainda mais complexo.
Depois de intensas discussões, na sociedade e no Congresso Nacional, quando se chegou a temer pela proibição dos aplicativos de transporte individual privado de passageiros, foi muito comemorado o resultado da votação que redundou na promulgação da Lei n.º 13.640/2018, que fez alterações pontuais na Política Nacional de Mobilidade Urbana (“PNMU”, objeto da Lei n° 12.587/12).
De fato, havia o receio de que fosse materializado um retrocesso absurdo, caso nossos legisladores optassem (como alguns pretendiam) pela proibição completa dessa atividade econômica que está revolucionando a mobilidade urbana nas cidades brasileiras. Porém, passada a euforia inicial, é necessário fazer uma análise fria da legislação, de modo a avaliar se ela representou ou não um efetivo avanço na regulação dessa atividade, especialmente considerando a necessidade de maior segurança jurídica para todos os envolvidos nesse tema (a saber: poder público, empresas que operam os aplicativos e sociedade civil que utiliza essas plataformas, como motoristas ou passageiros).
De um lado, é evidente que, com a categorização explícita desse tipo de atividade como uma das modalidades de transporte que integram a Política Nacional de Mobilidade Urbana (art. 4°, inciso X, da Lei 12.587/12), afastou-se o risco de proibição que permanentemente rondava as empresas que atuam no setor. E essa foi uma boa notícia.
De outro lado, e aqui temos a má notícia, a regulamentação como foi feita acabou se revestindo de vícios jurídicos que explicitam a disfunção federativa exposta acima e precisam ser enfrentados de forma rápida, pois ainda que não impeçam o exercício da atividade dos aplicativos de transporte individual privado de passageiros, podem inviabilizá-la (ou torná-la algo restrito a grandes centros urbanos).
Com efeito, na regulamentação editada pela União Federal, foram incluídos dois artigos à Lei 12.587/12 (artigos 11-A e 11-B), que, de forma inconstitucional, delegaram aos Municípios e ao Distrito Federal, competência exclusiva para “regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do art. 4º desta Lei no âmbito dos seus territórios”. Essa competência exclusiva indevidamente outorgada pela União aos Municípios e Distrito Federal deverá, contudo, observar algumas condicionantes, que são detalhadas posteriormente, mas que uma vez não observadas pelos motoristas, ou pelas empresas que operam os aplicativos, podem redundar na declaração de atividade ilegal de transporte de passageiros (artigo 11-B, parágrafo único).
A delegação de competência aqui indicada é claramente inconstitucional porque é indiscutível que competência privativa não pode ser delegada, sendo que o artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal estabelece, de forma literal, que compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte. Nesse sentido, a jurisprudência no STF sobre o tema da inconstitucionalidade de delegação da competência privativa de transporte é consolidada, bastando fazer referência, apenas como exemplos, aos acórdãos proferidos na ADI 1.704 (sobre lei estadual que determinava uso de película solar em carro) e na ADI 3.610 (sobre lei distrital que regulamentava atividade de motoboy).
Essa inconstitucionalidade, aparentemente grosseira, fica ainda mais reforçada quando se verifica que os artigos 11-A e 11-B foram indevidamente inseridos dentro do capítulo que trata das diretrizes para a regulação dos serviços de transporte público coletivo (capítulo II da Lei 12.587/12, que instituiu a PNMU). Esse capítulo é o que estabelece, por exemplo, critérios para a política tarifária de ônibus municipais (artigos 8° a 10°), bem como os requisitos para o exercício do transporte público individual de passageiros (os táxis, conforme artigo 12).
Ou seja, de forma absolutamente contraditória, a União exerceu sua prerrogativa constitucional privativa de aprimorar a Política Nacional de Mobilidade Urbana (daí o acerto da inclusão da atividade de transporte remunerado individual de passageiros na Lei n° 12.587/12), porém, tentou novamente aproximar a atividade dos aplicativos de transporte com os táxis, transferindo a possibilidade de regulamentação (ampla) e fiscalização do serviço aos Municípios e ao Distrito Federal.
O contrassenso está estampado na Lei, porque se somente à União cabia regular a matéria no exercício de sua competência privativa para tratar de trânsito e transporte, jamais ela poderia ter posteriormente delegado essa competência a outro ente federativo, ainda que essa delegação fosse, em tese, somente para regulamentar e fiscalizar essa atividade. Menos ainda porque não se está falando de serviço público ou coletivo de transporte, mas sim de atividade privada exercida pelos aplicativos.
Longe de ser um formalismo jurídico-constitucional, que é importante para estabilidade das relações jurídicas, existe uma razão de ser para essa contenção do papel dos Municípios e do Distrito Federal e a consequente prevalência do papel da União em matéria de trânsito e transporte: a uniformidade na exigência do cumprimento dessas regras em todo o País. E de que modo isso se relaciona com a busca pela racionalidade voltada a encontrar a justa medida da regulação estatal sobre um serviço inovador?
Ora, a relação é evidente: não é razoável supor que os mais de 5000 municípios estabeleçam normas e regulamentos diversos sobre a atividade dos aplicativos de transporte individual de passageiros, porque isso pode significar 5000 formas diferentes de se exercer aquela atividade. Além disso, ainda que a regulamentação seja facultativa, o fato é que as empresas que operam esses aplicativos exercem atividade econômica de âmbito nacional, atuando nas mais diversas cidades e estados do País.
E essa falta de razoabilidade se revela de forma concreta hoje quando verificamos, apenas a título de exemplo, que a Prefeitura de Belo Horizonte exige que os carros que realizam atividade de transporte de passageiros por aplicativo comportem no máximo 7 passageiros, mas não há exigência de idade máxima de fabricação do veículo e o regulador municipal permite que os veículos sejam registrados na Região Metropolitana de Belo Horizonte1. A Prefeitura do Rio de Janeiro, por sua vez, determina que os veículos que sejam utilizados nessa atividade tenham capacidade para no máximo 6 passageiros2. Na Capital do Estado de São Paulo, por sua vez, a recente alteração promovida na regulamentação do tema3, exige que os veículos dedicados à atividade de transporte individual por aplicativo tenham no máximo 8 anos de fabricação (exigência semelhante ao do Rio de Janeiro) mas admite veículo que sejam registrados apenas no Município de São Paulo, a despeito da notória conurbação e mobilidade entre as cidades da Grande São Paulo.
Qual é o sentido em que um município possa exigir que os carros dirigidos pelos motoristas de aplicativos tenham capacidade para no máximo 06 e outro permita no máximo 07 passageiros? Ou que se estabeleçam aleatoriamente datas sobre limite de ano de fabricação do veículo? Que interesse local poderia hipoteticamente justificar essa diferenciação de uma cidade para outra? A exigência quanto ao emplacamento dos carros em áreas metropolitanas não caberia então ao respectivo governo estadual? Esses são apenas alguns rápidos exemplos – pode-se extrapolá-los a outras inúmeras exigências, como os tributos de natureza diversa instituídos por diferentes prefeituras (ora como preço público, ora como taxa).
Mas esses singelos exemplos demonstram o tamanho do problema gerado, de um lado, pela inconstitucionalidade evidente na recente delegação de poder federal na tentativa de se estabelecer um marco regulatório sobre as atividades de transporte individual privado de passageiros e, de outro, pelo exercício desse poder regulamentar de forma quase aleatória pelos Municípios, sem embasamento, adequação e nem mesmo uniformidade quanto a questões simples. Tudo a comprovar a impossibilidade de se regular com enfoque local um serviço de natureza nacional.
Mais do que preciosismo jurídico, estamos diante de um risco regulatório relevante que deve ser enfrentado o quanto antes, por meios dos ajustes legislativos necessários. Nesse caso específico que tratamos aqui, parece que havia uma boa moldura institucional e legal para exercício de competências regulatórias, mas isso não aconteceu na prática. Daí porque deve ser permanente nosso esforço em apontar incongruências e cobrar coerência. A sociedade, maior beneficiária dos processos de inovação, é sempre o melhor fiscal quanto ao correto exercício do dever geral de cautela e uniformidade da regulação estatal, especialmente quando isso envolve as novas tecnologias.
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1Artigo 11, inciso I, “a” e inciso II, do Decreto Municipal n° 16.832, de 23/01/2018.
2Artigo 10, inciso VI, “a” e “b”, do Decreto Municipal n° 44.399, de 11/04/2018.
3Artigo 15-D, incisos II e IV, do Decreto Municipal n° 58.595, de 04/01/2019.